Estudante de farmácia extrai o óleo para dar a seus filhos e tem canal no YouTube onde auxilia outras mães a fabricar o próprio medicamento.
Por Daniel Biasetto
RIO — Imbuída da coragem inerente às mães, em meio ao desespero de ver seus três filhos afetados pela falta do único medicamento capaz de proporcionar a eles mínima qualidade de vida, a estudante carioca de farmácia Bruna Dias Lima Moraes, de 37 anos, decidiu romper a quarentena e bater literalmente na porta do Fórum Regional da Barra da Tijuca, aos prantos, para fazer um apelo ao juizado criminal e assim poder prosseguir com o tratamento das crianças à base de cannabis medicinal.
Munida de laudos médicos, relatos, fotos e de autorizações da Justiça Federal e da Anvisa para importar o remédio à base de THC (tetra-hidrocanabinol, principal substância psicoativa da cannabis), Bruna conseguiu um feito inédito: ela se tornou a primeira pessoa a conseguir um habeas corpus, sem a presença de um advogado, para manter o cultivo de 30 pés de maconha em casa, quantidade que julga suficiente para extrair o óleo das plantas que dá, além de uma vida digna, simples noites de sono aos pequenos Mateus, de 10 anos; Rebeca, de 5 anos; e Isaque, de 3 anos, todos diagnosticados com um grau severo de autismo.
Sem condições de arcar com o custo da importação dos medicamentos para os três filhos — cerca de R$ 200 mil por ano — e cansada de sofrer com a burocracia da Anvisa para liberá-los, Bruna afirma que a única maneira encontrada de suprir a necessidade dos três foi iniciando o cultivo, ainda em 2017. Mas o medo de ser presa a qualquer momento atormentava ela e o marido, o cineasta Daniel Fernando.
— O que me levou ao Fórum naquele dia foi o desespero de ver o meu filho menor regredir no tratamento. Eu expliquei com lágrimas nos olhos que é inadmissível ver uma criança de 1 ano dando cabeçada na parede e hoje, aos 3, viver uma vida normal e voltar a esse quadro de agressividade só porque a Anvisa leva de 30 a 60 dias para liberar um medicamento de alto custo — conta Bruna, que elogiou a atenção recebida no 9º Juizado Especial Criminal.
Bruna relata ao GLOBO que mesmo diante do risco de ser presa por revelar o cultivo clandestino das plantas de cannabis em sua casa, resolveu correr o risco de ir sozinha ao fórum na esperança de sensibilizar as autoridades diante de seu drama.
— Para minha surpresa o cartório não era um tabu e para a deles eu era a primeira mãe impetrando um habeas corpus sem advogado — conta Bruna que foi duas vezes ao fórum no mesmo dia até ser atendida.
— Eu fui sozinha, deixei os meus filhos com meu marido, pai das crianças, mas levei uma foto da minha família, ampliei a imagem para eles verem quem era meu marido — diz Bruna. — Contei a minha luta, expliquei a necessidade, mostrando as fotos do cultivo, da minha família, desenhos do Mateus. Fui ouvida com atenção e humanidade. No fim do dia já estava digitalizado e em 24 horas a liminar foi concedida.
Ela diz precisar de 10 plantas para conseguir retirar o óleo necessário cada filho ao custo de R$ 5.000 ao ano.
“A mãe do salvo conduto”
Na decisão publicada no início do mês, a juíza Simone Cavalieri Frota requer “salvo conduto” para a Bruna e determina que as polícias Civil e Militar “sejam impedidas de proceder à prisão em flagrante da paciente pela produção artesanal de 30 plantas da Cannabi Sativa, para fins estritamente medicinais, bem como fiquem impedidas de apreenderem as mudas das plantas utilizadas para o tratamento dos filhos” de Bruna.
— Eu indo pessoalmente ao fórum permitiu que eles conhecessem a mãe. Era muito importante a mãe ter contato com o Judiciário, porque talvez não entendessem o pai. Eles viram a minha real necessidade e todo o tempo e custo para um advogado ter que protolocar eletronicamente um processo sendo o meu caso de extrema urgência — afirma Bruna, que fundamentou seu pedido no Artigo 654 do Código Penal, no qual afirma que juízes e tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus “quando no curso de processo verificarem que alguém sofre violência ou está na iminência de sofrer coação ilegal”.
— Levei fotos do cultivo, falei que era estudante de farmácia, de todo o critério que faço do uso de máscara, luva, touca , jaleco para manipular as plantas. Mostrei todo esse material para o Judiciário, ali no diálogo. Fui muito bem acolhida.
Dois depois de obter o habeas corpus, Bruna voltou ao fórum para peticionar um documento que informava o local do cultivo das plantas
— Para minha surpresa fui reconhecida e chamada com alegria de a “mãe do salvo conduto”. Agradeci muito.
Bruna, que sempre se mostrou contrariada em tratar as crianças com remédios chamados “tarja preta” explica que sua decisão de passar a manipular em casa o óleo artesenal de THC se deu depois que descobriu que crianças autistas dos Estados Unidos e Israel estavam apresentando um rendimento excepcional com altas doses de THC.
— No caso dos meus filhos eles precisam de uma alta dosagem de THC, pois o THC relaxa, ele ajuda a dormir, ele tranquiliza. De uma maneira popular, ele ajuda a reconectar os fios cerebrais que, nos autistas, ficam soltos como se fosse um curto-circuito, então ele reconecta — diz Bruna, que passou a fazer faculdade de farmácia para poder entender como se fazia o óleo e tem até um canal no YouTube onde auxilia outras mães a fabricar o próprio medicamento.
— Daí eu tive que conseguir esse óleo. Tive que dar o meu jeito. Ver os meus filhos, pessoalmente, é ver um milagre. Pois eles nunca usaram o tarjado como Rivotril, Ritalina — relata Bruna ao explicar que os três filhos têm um grau elevado de autismo que pode levar a um comportamento agressivo e risco de se autolesionar.
— Sem o medicamento eles ficam agressivos, mas com a cannabis eu consigo controlar. Você pensa, eu estou falando com você agora com três crianças autistas. Cada uma ali na sua, interagindo com o que gosta, não está ouvindo gritos, porta quebrando, é um milagre essa planta.
Depois do ‘chá de cadeira’, a perda de um bebê
Um dos motivos que levou Bruna pessoalmente ao fórum marca um triste episódio na história dessa “mãe coragem”. No ano pasado, Bruna perdeu seu bebê após ele nascer prematuro quando ela já estava no oitavo mês de gestação. Embora Bruna não relacione os fatos diretamente, relembra que passou a ter complicações na gravidez depois de ter ficado seis horas sentada no Aeroporto do Galeão à espera da liberação do medicamento importado.
— Foi muito estressante porque eu moro no Recreio, então tive que me deslocar até o Galeão. Aquela situação da medicação presa, com meus filhos já dando cabeçada na parede. Fiquei por seis horas sentada, esperando um superintendente. Eu me lembro de ter chegado na Anvisa às 14h e sair de lá às 20h30, sem o medicamento e sem uma solução, tendo que enviar um pedido de excepcionalidade à presidência da Anvisa, isso com toda a documentação e inclusive apresentando a liminar da Justiça Federal permitindo a compra do medicamento somente para o Mateus.
Depois de ouvir os relatos sobre a dificuldade de Bruna pela liberação dos medicamentes, a juíza Simone Cavaliere citou a burocracia da Anvisa na decisão.
“Ademais, há ainda a necessidade de estender o benefício para os outros filhos, os quais passaram a também fazer uso do produto, o que aumentará a dificuldade de tratamento de todos, tendo em vista a comprovada burocracia que envolve o procedimento”, afirma a juíza na sentença.
— Meus filhos falam, meus filhos cantam, meus filhos estudam, dançam, sonham. O mais velho quer ser dentista, a Rebeca quer ser bailarina e o Isaque ainda é pequeninho, mas é tão esperto! Ele joga PS4, vai na geladeira, pega uma maçã, come e isso tudo graças à maconha.
Bruna afirma que esse avanço no tratamento só é possível quando não há interrupção no tratamento.
— Eles precisam da continuidade. A continuidade dá uma vida normal a ponto do Mateus, a menor nota dele ser 7 e ele não precisar de mediador escolar. É um menino que desce no prédio, vai à piscina, tem amigos e isso foi possível com a cannabis. O direito à importação não garante o acesso e a continuidade do tratamento — diz.
“É um ser humano precisando de ajuda”
Bruna se diz aliviada com a decisão e espera que ela possa encorajar outras mães a buscarem seus direitos pela vida de seus filhos.
— É muito importante que as mães, mesmo as periféricas, que elas venham a plantar. É muito importante que isso crie um movimento, onde as mães procurem o Judiciário porque é visto de outra maneira, não é um advogado, não é um processo eletrônico, é um ser humano precisando de ajuda. Não há um juiz que vá negar a uma mãe que está ali, pessoalmente, plantar maconha para tratar o seu filho — afirma.
A batalha de Bruna pelo cultivo legalizado para extração do óleo levou a estudante de farmácia a criar uma associação que dá suporte psicológico a famílias que precisam do medicamento e muitas vezes não têm o acesso e não sabem nem como fazer para conseguir.
De acordo com o levantamento “HCs para cultivo de cannabis com fins terapêuticos no Brasil” feito pela empresa Open Green, que junto a associações, “capacitam profissionais para o dinamismo do setor canábico regular no Brasil” há em todo o país 99 habeas corpus concedidos a famílias que fazem uso da maconha medicinal, porém, ao contrário de Bruna, todos impetrados por advogados.
Fonte: O GLOBO.COM