Falta de vagas em creches impacta mães e crianças na periferia do Rio

Foto Paulo H Carvalho/ Agência Brasília

Pesquisa mostra que ausência de escolas públicas prejudica desenvolvimento infantil e impede mulheres de trabalharem

A falta de vagas em creches e escolas públicas tem gerado um impacto direto na vida de mães e crianças em diversas regiões periféricas do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense. Segundo um levantamento do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), realizado entre 2022 e 2023, 61,8% das mulheres do bairro Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, afirmam não ter acesso a unidades públicas para deixar seus filhos enquanto trabalham.

O mesmo problema se repete em favelas da Grande Tijuca, como Borel (17,7%), Indiana (20,7%) e Chácara do Céu (28,7%), e no Complexo do Alemão, onde 32% das mães relatam a ausência de creches ou escolas públicas.

A pesquisa ouviu 12.414 pessoas e revelou que a falta de vagas prejudica o desenvolvimento das crianças e obriga as mães a arcar com despesas extras, como mensalidades em escolas particulares ou cuidadores. Em muitos casos, essas mulheres acabam sem condições de trabalhar por não terem onde deixar os filhos.

Realidade das mães

A dona de casa Gisely de Aguiar, de 24 anos, moradora de Jardim Gramacho, enfrenta essa dificuldade diariamente. Mãe de três filhos — um menino de 2 anos, uma menina de 4 anos e um mais velho de 6 anos — ela não conseguiu vaga em creche para o filho mais novo e precisou matricular a filha em uma escola particular.

“O mais novo não está em creche porque tem sorteio, e ele nunca é chamado. Minha filha também não conseguiu vaga em escola pública, então tiro do Bolsa Família para pagar uma escola particular. Ano que vem, vou tentar colocá-la em uma pública. Já o mais velho, consegui matricular este ano”, conta Gisely, que gostaria de trabalhar fora, mas não tem rede de apoio para cuidar das crianças.

A reportagem procurou a Prefeitura de Duque de Caxias para comentar os dados da pesquisa, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria.

Déficit na educação e ciclo de pobreza

A pesquisa também revelou que muitas mulheres dessas regiões não conseguiram completar a educação básica. Em bairros da Grande Tijuca, 38,3% das entrevistadas não concluíram o ensino fundamental, enquanto os índices em Jardim Gramacho (33%) e no Complexo do Alemão (34%) também são elevados.

A dificuldade se estende ao ensino superior: em favelas da Tijuca, apenas 2% das mulheres têm graduação, número semelhante ao de Jardim Gramacho (1,7%). O Complexo do Alemão apresenta um percentual um pouco maior (6%), mas ainda bem abaixo da média nacional, que é de 20,7%, segundo o IBGE.

A diretora-executiva do Ibase, Rita Corrêa Brandão, lembra que a educação infantil é um direito garantido pela Constituição e que a falta de creches prejudica tanto as crianças quanto as mães.

“As mulheres dessas regiões têm empregos precarizados e salários mínimos. Sem creche pública, quem trabalha precisa pagar uma particular, comprometendo a renda familiar. Além disso, muitas acabam deixando os filhos com parentes ou até mesmo com crianças e adolescentes, o que não é adequado. Isso configura uma dupla violação de direitos: o da criança à educação e o da mulher ao trabalho”, alerta Rita.

Déficit pode ser ainda maior

A coordenadora do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe), Samantha Guedes, afirma que o déficit de vagas em creches e na educação infantil é subnotificado.

“Muitos responsáveis sequer entram na lista de espera porque já sabem que não vão conseguir uma vaga. Os números reais são muito maiores”, destaca.

Outro problema apontado por Samantha é o horário reduzido de funcionamento das creches.

“As creches deveriam funcionar das 7h às 17h, mas no Rio a maioria abre das 8h às 15h30. Isso obriga as mães a pagar alguém para buscar os filhos ou deixar sob os cuidados de irmãos mais velhos ou avós”, explica.

Em 2024, a Prefeitura do Rio foi condenada a pagar uma multa de mais de R$ 2 bilhões por não ter conseguido zerar a fila de espera em creches e pré-escolas. No final de 2023, ainda havia 12.394 crianças de até 6 anos aguardando vaga em período integral e 2.911 em período parcial. A reportagem entrou em contato com a Secretaria Municipal de Educação para atualizar esses números, mas não obteve resposta.

Desigualdade entre pobres e ricos

A gerente de Políticas Públicas da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Beatriz Abuchaim, alerta que as crianças mais pobres têm menos acesso à educação infantil do que as de famílias mais ricas, ampliando a desigualdade social.

“Famílias vulneráveis muitas vezes não têm livros ou brinquedos em casa, que são fundamentais para o desenvolvimento infantil. Se a criança tem acesso a uma creche de qualidade, esses estímulos são garantidos”, explica Beatriz.

Ela também destaca que a falta de acesso à educação infantil impacta a vida adulta dessas crianças.

“Estudos mostram que crianças que frequentam creches de qualidade têm melhores resultados de aprendizagem, menor chance de evasão escolar, menos envolvimento com criminalidade e maior inserção no mercado de trabalho. Esse é um fator crucial para romper o ciclo intergeracional da pobreza”, afirma.

Meta nacional ainda distante

O Plano Nacional de Educação (PNE) previa que 50% das crianças de até 3 anos deveriam estar matriculadas em creches até 2024. No entanto, segundo o IBGE, apenas 33,9% estão frequentando essas instituições.

Além disso, o Brasil ainda não atingiu a universalização da pré-escola para crianças de 4 e 5 anos, que deveria ter sido alcançada em 2016. Atualmente, 86,7% das crianças nessa faixa etária estão matriculadas.

Atualmente, 2,3 milhões de crianças de até 3 anos estão fora da creche por falta de vagas. As famílias mais pobres enfrentam dificuldades quatro vezes maiores para conseguir matrícula, em comparação com as famílias mais ricas.

Um direito essencial

Especialistas defendem que ampliar a oferta de creches e escolas públicas deve ser prioridade do poder público. Além de garantir a educação infantil, a medida permite que mais mulheres ingressem no mercado de trabalho, reduzindo a dependência de programas sociais e promovendo a mobilidade social.

Enquanto isso, mães como Gisely seguem enfrentando a incerteza sobre o futuro de seus filhos e a própria sobrevivência. “Eu queria trabalhar, estudar, mas sem creche não tem como. A gente fica sem escolha”, lamenta.