Autora de obras importantes obras de Brasília, como os vitrais da Catedral e do Panteão da Pátria, Marianne Peretti morreu no Recife, na segunda-feira , aos 94 anos. Ela será sepultada no Campo dos Pioneiros, em Brasília
Marianne Peretti não hesitava em dizer que Brasília mudou sua vida. Foi no final dos anos 1970, que conheceu Oscar Niemeyer, no escritório do arquiteto, no Rio de Janeiro. A partir daquele encontro, teve início uma parceria que mudaria a vida da artista, mas também a dos prédios da capital projetados por Niemeyer. A conversa entre artista e arquiteto ficou impressa para sempre nos painéis e vitrais criados por Marianne, que morreu na segunda-feira, em Recife, aos 94 anos. Amante do modernismo e do casamento perfeito entre uma técnica milenar e a ousadia da arquitetura cheia de curvas e concreto, Marianne será sepultada neste sábado (30/4), no Cemitério Campo da Esperança, em Brasília. O velório está marcado para as 13h e o corpo da artista chegou à cidade ontem, no final da tarde.
Filha de um historiador pernambucano e de uma modelo francesa, Marianne Peretti nasceu e estudou em Paris. Quando chegou ao Brasil, em 1956, tinha 29 anos e uma curiosidade que nunca a abandonou e acabou por guiá-la ao Planalto Central. “Brasília mudou minha vida. Antes, fazia pinturas, desenhos e alguma coisa de escultura e vitrais para arquitetos. Depois de trabalhar na capital, passei a fazer muitos vitrais. Hoje, ganho a vida assim”, contou, em entrevista ao Correio Braziliense, em agosto de 2003.
A artista trabalhou ao lado de Niemeyer durante muitas décadas. Fez os painéis que hoje aparecem todas as imagens de cobertura de televisão do Senado Federal e criou outro para o Palácio do Jaburu, em 1979. No ano seguinte, deu forma ao vitral pelo qual penetra a luz roxa sobre a cripta de Juscelino Kubitschek no Memorial JK e a escultura do pássaro dourado no Foyer da Sala Villa-Lobos, no Teatro Nacional. A luz vermelha filtrada pelos vitrais em tonalidades alaranjadas que banha o Panteão da Pátria também é criação de Marianne, uma obra do final da década de 1980.
Foi nessa época que a artista trabalhou na proposta mais ousada e conhecida: os vitrais da Catedral Metropolitana, um pedido do próprio Niemeyer. “Ele falou, durante anos, que era preciso fazer, mas eu não me entusiasmava muito porque achava muito grande. Dizia que podíamos limpar bem o vidro, que ficava bonito com as nuvens. Quando inaugurou o Panteão, não pude mais negar”, contou a artista, em entrevista ao Correio Braziliense. ”Sempre falamos da arquitetura de Oscar porque ele fez a cidade, fez o marco. Ele tem a estrela, com certeza, um pouco maior que a nossa, um senso do aproveitamento do momento muito grande. E há também um fenômeno que explica essa indagação, que é o fato de ele ter feito um trabalho especial e único”, acreditava a artista.
A pesquisadora Tactiana Braga, organizadora do livro Marianne Peretti — A ousadia da invenção, encara a obra da artista como excepcional no cenário internacional. “Ela coloca o Brasil no mapa da arte vitral. E dialoga com esse vitral com liberdade, não se prende aos cânones do modernismo e traz ao modernismo um vitral com novas possibilidades. Isso é muito valioso”, explica. Além disso, a artista também imprime um olhar feminino em um universo tradicionalmente ocupado por homens. “É o traço da mulher no imaginário da construção da capital. Ela criou obras numa escala que nenhum outro homem fez. É um olhar que não é de um escultor homem, de um artesão homem, é o olhar de uma mãe, mulher, de um feminino que se expressa no vitral de forma feminina, delicada, sutil, leve, criando o ambiente do sagrado. Todos os vitrais de Marianne têm a presença do feminino”, afirma a pesquisadora.
Com formação francesa e acostumada a observar vitrais desde a infância, Marianne tinha pleno domínio da técnica e da história desse tipo de material. Em Brasília, ela quis dar a essa forma de decoração tradicional em catedrais milenares um ar moderno. Como lembrou Marcus Lontra ao analisar a obra da artista, ela recupera os vitrais góticos e acentua o caráter operístico da arquitetura de Niemeyer. A técnica milenar ganha elegância, ousadia e sensualidade nas curvas desenhadas para obras como a do Memorial JK, do Panteão da Pátria e da própria Catedral.
As curvas retomam a forma dos prédios públicos da capital, enquanto as cores emergem da própria cultura brasileira, que Marianne abraçou ao se mudar para o Rio de Janeiro e, mais tarde, para Recife e Olinda, onde montou e manteve ateliê durante muitos anos. “Ela teve uma contribuição muito grande”, avisa Lontra, que é curador e especialista em modernismo. “A grande obra dela é o vitral da Catedral, que os puristas da arquitetura moderna não gostam, mas acho que contribuiu enormemente para o clima que o Oscar queria, como se estivesse entrando no céu.”
Para Lontra, a formação franco-pernambucana se reflete no trabalho da artista por meio do compromisso com a questão do vitral combinado a um movimento sinuoso, meio matissiano. “Ela conseguia integrar muito bem essa situação. Ela sofreu muito por uma visão excludente da arte moderna com esses artistas que faziam trabalhos de integração arquitetônica, como se aquilo não fosse o patamar maior da arte. Hoje, graças a Deus, isso foi para o espaço”, explica o curador.
A criação dos vitrais da Catedral exigiu enorme esforço físico da artista. Ela gostava de contar como se debruçava sobre os desenhos em tamanho real espalhados no chão do Ginásio Nilson Nelson. A presença em cada etapa da confecção, desde o acompanhamento da qualidade do vidro até a precisão dos desenhos e esboços, era uma das características do trabalho. O arquiteto José Roberto Bassul, na época estudante e desenhista em uma empresa de vidro temperado, tem uma lembrança marcante de Marianne.
Bassul acompanhou parte da confecção dos painéis do Congresso Nacional e do Palácio do Jaburu. “Me chamou muito a atenção a criatividade, o rigor técnico, as exigências de acabamentos”, conta. “A personalidade dela era criativa e rigorosa ao mesmo tempo. O trabalho dela pertence a uma tradição que vai lamentavelmente se perdendo um pouco, que é a integração de arte e arquitetura.”
Arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura de Brasília (FAU/UnB), Eduardo Rossetti diz que o trabalho da artista acrescenta à obra de Niemeyer uma contribuição semelhante àquela de Athos Bulcão. “Os vitrais acrescentam um suporte artístico e uma manifestação plástica. O Athos veio com um tipo de superfície mais plural, com alto relevo, baixo relevo, azulejo. Marianne traz o vitral, o elemento da transparência, da luz”, avalia o arquiteto. Para ele, uma das obras mais surpreendentes da artista está no Memorial JK. “O vitral do mausoléu é muito impactante, aquela luminosidade vermelha, roxa e amarela sobre JK é fundamental. Aquele espaço sem a obra da Marianne seria outro”, acredita.(CB)