Arruda quer “lavar a ficha” com nova lei

 

Ex-governador tenta reinterpretar lei para reduzir punições por improbidade, mas especialistas afirmam que a estratégia ignora decisões do STF e fere o princípio da moralidade pública

 

As recentes mudanças na Lei da Ficha Limpa reacenderam um debate incômodo e revelador sobre a relação entre poder e impunidade no Brasil. Condenado em uma série de ações por improbidade administrativa, o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda (PL) tenta agora se apoiar em uma interpretação conveniente da Lei Complementar nº 219/2025 para encurtar o prazo de sua inelegibilidade e, quem sabe, pavimentar um retorno à política.

A tese, no entanto, é vista por especialistas como uma tentativa de contornar a essência moral da legislação que justamente busca impedir o retorno de gestores condenados por corrupção à vida pública. O professor da USP e ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Carlos Horbach lembrou que o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou sobre o tema ao decidir, no Tema 1.199, pela irretroatividade de mudanças semelhantes em casos de improbidade. “Não se pode tomar como pacífico o entendimento de que a regra mais benéfica será aplicada de modo amplo e automático aos casos já julgados”, explicou.

Na mesma linha, o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello foi direto: “Se não se trata de aplicação de lei penal, a retroatividade é imprópria”. A afirmação desmonta a narrativa construída pela defesa de Arruda, que tenta enquadrar suas condenações num novo regime jurídico como se a lei pudesse servir de absolvição tardia.

presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou todos os trechos da lei que buscavam permitir a aplicação retroativa das novas regras — uma decisão que, segundo juristas, impede claramente qualquer tentativa de reinterpretação favorável a condenados como Arruda. As condenações do ex-governador, todas relacionadas à Operação Caixa de Pandora, são anteriores à sanção da nova lei e, portanto, seguem sob o regime anterior.

Pela regra vigente, Arruda continuará inelegível até pelo menos 2032, já que cada condenação carrega um prazo individual de oito anos. A última, de novembro de 2024, reforça o bloqueio político do ex-governador por quase uma década. Mesmo que ainda haja processos pendentes no Superior Tribunal de Justiça (STJ), uma eventual confirmação de sentença antes das eleições de 2026 apenas ampliaria o período de inelegibilidade — tornando irrelevante qualquer esperança de retorno imediato às urnas.

Apesar disso, a defesa de Arruda tenta emplacar uma tese juridicamente frágil e politicamente conveniente: a de que as cinco condenações por improbidade deveriam ser unificadas em um único prazo de 12 anos, com base no argumento de que todas derivam da mesma Operação Caixa de Pandora. O discurso, contudo, não resiste à análise técnica. Cada ação envolve contratos distintos, com irregularidades e contextos próprios — um conjunto de fatos que desmonta a alegação de conexão direta e impede a unificação das penas.

O caso, inevitavelmente, deve parar novamente no STF, que já analisa uma ação de inconstitucionalidade da nova lei, sob relatoria da ministra Cármen Lúcia — a mesma que relatou o processo que barrou a candidatura de Arruda em 2022. Nesta semana, a ministra determinou que o presidente Lula e o presidente do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre (União-AP), prestem informações sobre as mudanças na lei.

A ação, movida pela Rede Sustentabilidade, aponta vícios no processo legislativo que aprovou a nova norma. O partido sustenta que o Senado modificou substancialmente o texto da Câmara, alterando critérios de inelegibilidade e prazos sem devolvê-lo à Casa de origem, o que viola o princípio bicameral previsto na Constituição.

Em meio a vetos, controvérsias jurídicas e tentativas de reinterpretação, o caso de Arruda simboliza mais do que uma disputa individual: expõe a resistência de figuras políticas em aceitar as consequências de seus atos e a persistente tentativa de enfraquecer instrumentos criados para proteger a ética pública.

O que está em jogo, mais uma vez, é se a Lei da Ficha Limpa continuará sendo um marco de moralidade na política brasileira — ou se será transformada em mais uma norma reinterpretada à conveniência de quem dela deveria ser exemplo.

Com informações Metrópoles