
Inspeção realizada pelo Conselho Federal de Psicologia revela práticas como choque elétrico, medicalização forçada, isolamento punitivo e abandono institucional em unidades de custódia psiquiátrica
Práticas de tortura e graves violações de direitos humanos ainda marcam a realidade dos manicômios judiciários no Brasil. É o que revela o Relatório de Inspeção Nacional: Desinstitucionalização dos Manicômios Judiciários, lançado nesta segunda-feira (28) pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
As inspeções foram realizadas entre janeiro e março de 2025, em 42 instituições localizadas em 21 unidades federativas das cinco regiões do país. As equipes identificaram uso de choque elétrico, medicalização forçada, contenções físicas e químicas sem respaldo clínico, violência física e psicológica, isolamento punitivo, além de condições degradantes de infraestrutura, higiene e alimentação. Ao todo, foram contabilizadas 2.053 pessoas com deficiência psicossocial ainda institucionalizadas nesses espaços.
“É uma denúncia pública e técnica que escancara o que o Brasil insiste em esconder atrás de muros e grades: a continuidade de práticas de tortura, abandono e o encarceramento que equivale, na prática, a prisões perpétuas”, afirmou Alessandra Almeida, presidenta do CFP, durante o lançamento do relatório.
Os manicômios judiciários abrigam pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial em conflito com a lei. Eles estão no centro da Resolução nº 487/2023 do CNJ, que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e recomenda o fechamento desses estabelecimentos. O novo relatório confirma que, mesmo após uma década do primeiro diagnóstico feito pelo CFP, essas instituições seguem operando sob uma lógica de exclusão, punição e abandono estatal.
Segundo o CFP, as unidades inspecionadas apresentam infraestrutura precária, superlotação, falta de acessibilidade, restrição de circulação, e carência de itens básicos de higiene e vestuário. O relatório também denuncia a precarização das condições de trabalho dos profissionais atuantes nessas instituições.
Durante o evento, Alessandra Almeida destacou os atravessamentos de racismo, capacitismo, classe e gênero na construção social do “sujeito perigoso”. “Nos manicômios judiciários, não se pune o que alguém fez, mas o que se teme que essa pessoa possa fazer. A noção de periculosidade é subjetiva, enviesada, racializada e capacitista”, explicou.
Inspirando-se no pensamento de Franz Fanon, Almeida ressaltou que a psiquiatria pode servir como ferramenta de opressão quando transforma pessoas em problemas a serem corrigidos. “A colonialidade habita os discursos da normalidade, do diagnóstico e do controle. No Brasil, isso se expressa com ainda mais força sobre pessoas negras, pobres, periféricas e com sofrimento psíquico.”
O relatório conclui que os manicômios judiciários combinam “o pior da prisão com o pior do hospício”, e defende a desinstitucionalização imediata dessas estruturas. “A interseccionalidade precisa ser elemento central das análises, investigações e práticas psicológicas diante da complexidade social imposta a esses sujeitos”, finalizou a presidenta do CFP.