Desinformação sobre autismo explode no Telegram e ameaça saúde pública na América Latina

Estudo aponta crescimento de mais de 15.000% nas postagens conspiratórias sobre o Transtorno do Espectro Autista entre 2019 e 2025; Brasil lidera com quase metade dos conteúdos

Um estudo inédito divulgado pela Fundação Getulio Vargas (FGV), em parceria com a Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil), acende um alerta preocupante: o volume de desinformação sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) cresceu mais de 150 vezes nos últimos seis anos em grupos do aplicativo Telegram na América Latina e Caribe.

Entre 2019 e 2025, o número de postagens mensais sobre autismo em comunidades conspiratórias saltou de 4 para 611, o que representa um aumento de 15.000%. O auge da disseminação aconteceu durante os primeiros anos da pandemia de covid-19, quando o crescimento bateu 635% em um curto espaço de tempo.

A pesquisa, intitulada Desinformação sobre Autismo na América Latina e no Caribe, analisou mais de 58 milhões de mensagens em 1.659 grupos conspiratórios distribuídos por 19 países, totalizando 5 milhões de usuários. As comunidades estudadas estão fortemente ligadas a movimentos antivacina, negacionismo científico, terraplanismo e outras teorias da conspiração.

Brasil lidera na desinformação sobre o autismo

Segundo os dados, o Brasil responde por 46% de todo o conteúdo conspiratório sobre autismo na região. Foram 22.007 publicações, que impactaram cerca de 1,7 milhão de pessoas, gerando quase 14 milhões de visualizações.

“Infelizmente, o Brasil ocupa o primeiro lugar em produção e circulação de desinformação sobre o autismo no Telegram”, afirmou Ergon Cugler, coordenador do estudo e pesquisador da FGV, que também é autista.

Além do Brasil, Argentina, México, Venezuela e Colômbia também figuram entre os países com mais conteúdo conspiracionista sobre o TEA.

Falsas causas e curas perigosas

A análise encontrou mais de 150 falsas causas atribuídas ao autismo, entre elas:

  • Radiação de redes 5G

  • Vacinas

  • Campo magnético da Terra

  • Alimentos como Doritos

  • Chemtrails (rastros de aviões)

Também foram identificadas “curas milagrosas” perigosas e sem comprovação científica, como o uso de dióxido de cloro e terapias alternativas sem respaldo médico. “Muitas dessas soluções são comercializadas pelos próprios autores das postagens, que lucram com o desespero de famílias”, denuncia Guilherme de Almeida, coautor do estudo e presidente da Autistas Brasil.

Além disso, o estudo revela o uso da fé como ferramenta de manipulação, com promessas de cura espiritual e incentivo ao abandono de tratamentos médicos.

Uma indústria movida pela desinformação

Para os pesquisadores, a desinformação sobre o autismo se transformou em um negócio lucrativo, explorando pais e cuidadores emocional e financeiramente. “Estamos diante de um sistema articulado entre economia, política e cultura, onde o medo, a culpa e a esperança são convertidos em consumo”, analisa Almeida.

Cugler destaca que muitos desses grupos operam com estratégias de marketing digital, usando linguagem pseudocientífica para parecerem confiáveis. Eles constroem narrativas de medo, que são seguidas por ofertas de produtos e cursos pagos — tudo isso dentro de bolhas informacionais que validam essas ideias entre os próprios membros.

Riscos à saúde e aos direitos

A propagação de informações falsas sobre o autismo não é inofensiva. Segundo Almeida, ela atrapalha o diagnóstico precoce, desvia recursos públicos e privados, promove práticas perigosas e aumenta o estigma.

“O impacto é profundo: compromete diagnósticos, enfraquece políticas públicas, reforça o isolamento e perpetua a ideia de que o autismo é uma tragédia a ser curada, em vez de uma condição a ser compreendida”, alerta.

Cugler reforça que a desinformação é uma ameaça direta à saúde pública. “Quando pessoas abandonam tratamentos sérios para adotar promessas falsas, colocam em risco a própria integridade física e emocional”, afirmou.

Como combater esse cenário?

Os autores defendem ações em múltiplas frentes:

  • Políticas públicas eficazes voltadas para o TEA

  • Educação crítica sobre ciência e saúde

  • Responsabilização criminal de quem lucra com desinformação

  • Fiscalização e posicionamento mais firme das plataformas digitais

“Em tempos de mercadores da esperança, proteger-se da desinformação é também um ato de cuidado”, resume Almeida.

O que é o TEA?

O Transtorno do Espectro Autista é caracterizado por dificuldades na comunicação e interação social, além de comportamentos repetitivos e sensibilidade a estímulos sensoriais. A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) estima que 1 em cada 160 crianças no mundo tenha TEA, embora dados mais recentes sugiram números ainda maiores.

No Brasil, a Autistas Brasil estima que cerca de 5,6 milhões de pessoas tenham diagnóstico de autismo.