TORTURA, CENSURA, DITADURA E BOLSONARO: NUNCA MAIS

 

 

 

 

 

O noticiário da penúltima semana do mês de março de 2022 foi dominado por dois temas de profunda importância: a) a corrupção e b) a liberdade de manifestação

 

As notícias sobre corrupção trataram das peripécias do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro e dos pastores evangélicos Gilmar Santos e Arilton Moura. Confira a explosiva fala do ex-ministro da Educação: “Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim sobre a questão do [pastor] Gilmar. A minha prioridade é atender primeiro os municípios que mais precisam e, em segundo, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar”.

A partir da divulgação da referida confissão, relacionada com a liberação de recursos do Ministério da Educação para Municípios, surgiram elementos adicionais como: a) várias audiências dos pastores com o ministro; b) vários encontros e fotos dos pastores com o presidente Jair Bolsonaro; c) eventos com distribuição de bíblias e a presença do ministro da Educação; d) voos em aviões da Força Aérea Brasileira – FAB e e) falas de vários prefeitos (pelo menos dez) detalhando o modus operandi dos “homens da fé”, incluindo pedidos explícitos de propinas, em dinheiro e ouro, e de apoio eleitoral (fontes: estadao.com.bruol.com.brg1.globo.com e metropoles.com). O mais novo escândalo de corrupção do (des)governo Bolsonaro culminou com a exoneração do senhor Milton Ribeiro.

Já as notícias relacionadas com a liberdade de expressão envolveram o festival de música Lollapalooza e uma decisão do Ministro Raul Araújo, no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral – TSE. O magistrado, a partir de representação do Partido Liberal – PL, vedou “… a realização ou manifestação de propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político por parte dos músicos e grupos musicas que se apresentem no festival, sob pena de multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por ato de descumprimento”.

Obviamente, a liberdade de manifestação, assim como qualquer outro direito, não é absoluto ou tem exercício ilimitado. Entretanto, parece fora de dúvida, que a manifestação de apreço ou desapreço a pré-candidato, sem remuneração e sem pedido expresso de voto (art. 36-A da Lei n. 9.504, de 1997), realizada por artista ou não, num palco ou não, não se inclui entre as referidas limitações (Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n. 5.970, Supremo Tribunal Federal – STF). Prevalece o exercício dos direitos fundamentais de manifestação de pensamento e liberdade de expressão das atividades intelectuais e artísticas, tal como consagrados no art. 5o, incisos IV e IX, da Constituição.

Aliás, o que se observou foi uma posição amplamente majoritária do mundo jurídico brasileiro no sentido de condenar a aludida decisão monocrática do Ministro Raul Araújo. O    tempo da censura é um triste registro histórico e deve permanecer assim pela vigilância e ação das instituições do Estado Democrático de Direito e da cidadania ativa.

Um outro assunto, de profunda relevância para a prevalência dos  direitos humanos, terminou ofuscado diante do noticiário voltado para os dois primeiros temas destacados. Esse assunto é justamente o da tortura.

Segundo o art. 5o da Constituição:

“III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”

“XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”

A Lei n. 9.455, de 1997, considera como crime de tortura:

“I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.

A prática da tortura é uma daquelas mais nítidas fronteiras civilizatórias. Afinal, provoca-se, em alguém indefeso ou sem possibilidade de reação, intenso sofrimento físico ou mental. Estamos, nesses casos, no limite máximo da covardia e da afronta à dignidade da pessoa humana. O torturador é invariavelmente comparado a um monstro pela evidente ausência de sentimentos humanos fundamentais como a empatia, a compaixão e o amor.

A primeira das notícias acerca da tortura teve origem numa importante decisão do Supremo Tribunal Federal. Segundo a decisão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n. 607, proferida por unanimidade, “o esvaziamento de políticas públicas previstas em lei por meio de atos infralegais, como decretos, é abuso do poder regulamentar, e contraria o princípio da separação dos Poderes” (fonte: conjur.com.br). Esse entendimento foi aplicado para reconhecer a inconstitucionalidade de várias partes do Decreto n. 9.831, de 2019. O ato foi adotado pelo presidente Jair Bolsonaro e alterava a composição e funcionamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – MNPCT.

O decreto referido remanejou onze cargos comissionados de perito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para o Ministério da Economia. Os ocupantes dos cargos foram exonerados. Ademais, a participação no Mecanismo foi considerada como “prestação de serviço público relevante, não remunerada”. O STF, na decisão aludida, determinou o restabelecimento da destinação dos cargos aos peritos, com a pertinente remuneração.

A segunda notícia relacionada com a tortura teve como objeto mais uma fala repulsiva do senhor Jair Bolsonaro. No dia 27 de março de 2022, esse senhor fez mais uma lamentável homenagem a Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-coronel do Exército Brasileiro. Ustra já foi condenado em segunda instância por tortura e outros crimes praticados durante a ditadura militar. Bolsonaro afirmou que Ustra foi um “velho amigo, que lutou por democracia” !!! Não custa lembrar a declaração de voto de Bolsonaro, no dia 17 de abril de 2016, por ocasião do processo de impeachment da então presidente da República. Disse, para nojo geral, o atual presidente: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff” (fonte: em.com.br).

Essas falas são repetições de tantas outras registradas pela imprensa brasileira. Talvez a mais contundente tenha sido efetivada em entrevista no dia 25 de maio de 1999. Naquele momento, o senhor Bolsonaro afirmou: “Dá porrada no Chico Lopes. Eu até sou favorável que a CPI, no caso do Chico Lopes, tivesse pau de arara lá. Ele merecia isso: pau de arara. Funciona! Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também”. Na mesma ocasião, Bolsonaro defendeu o fuzilamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e disse que “daria golpe no mesmo dia” e fecharia o Congresso se fosse eleito presidente da República” (fonte: poder360.com.br).

Temos, não há como negar, um chefe de Governo e de Estado dos mais desprezíveis. Como não caracterizar como desprezível alguém que faz apologia da tortura? Esse senhor figura entre os mais desqualificados brasileiros por qualquer critério de análise utilizado: a) qualidades como pessoa; b) qualidades como gestor ou c) qualidades como governante. No dia 31 de março de 2022, depois de celebrar o golpe de 1964, o senhor Jair Messias, em mais um gesto de arrogância e descontrole, chegou a afirmar, caracterizando um ataque institucional raras vezes visto na República: “O que que falta? Que alguns poucos não nos atrapalhem. Se não tem ideias, cale a boca! Bota a tua toga e fica aí sem encher o saco dos outros! Como atrapalham o Brasil” (fonte: estadao.com.br). Afinal, o senhor Messias Bolsonaro poderia ser apresentado como exemplo de quais virtudes para um conjunto de jovens estudantes brasileiros? Seria um modelo a ser seguido? Seria um líder a ser admirado e inspirador dos melhores valores do convívio humano?

E aqui cabe uma ponderação específica. O senhor Bolsonaro se diz cristão e utiliza um lema onde consta: “Deus acima de todos”. Jesus Cristo foi um preso político barbaramente torturado, mas promoveu a mais relevante revolução na face da Terra. Foi a revolução do amor ao próximo, da justiça, da harmonia e do perdão. Acolheu a todos sem distinções, incluindo explicitamente prostitutas, bandidos e leprosos. Os ensinamentos do Mestre dos Mestres e o Deus apresentado por Jesus não guardam nenhuma relação com o discurso de ódio, violência e apologia à tortura de Jair Bolsonaro. Esse senhor, confortavelmente instalado em motos e jet skis, conseguiu (para uma parcela da sociedade brasileira) a façanha de transformar as mais sublimes lições de um Cristo torturado em armas de convencimento político em favor de todo tipo de violência física e simbólica. Registre-se, para que dúvidas não pairem, a essência do pensamento de Jesus Cristo: “Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes” (Bíblia. Marcos 12:30,31).

No momento em que alguns rendem indevidas homenagens ao golpe militar de 1964, é importante afirmar e reafirmar: tortura nunca mais, censura nunca mais e ditadura nunca mais. Em acréscimo, como forma de realização dessas máximas, é imperioso dizer, repetir e agir no seguinte sentido: Bolsonaro nunca mais. Vale lembrar o famoso alerta de William Shakespeare: “Atiramos o passado ao abismo, mas não nos inclinamos para ver se está bem morto”.

 

Aldemário Araújo

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 1o. de abril de 2022