Irmã do consagrado diretor cearense Karim Aïnouz (de ‘A vida invisível’ e ‘Praia do Futuro’), Kamir conta que filme lançado em breve foi inspirado na família e nas raízes da Argélia
Não bastasse tratar de temas vistosos como formulação de sexualidade, fundamentalismo religioso e queda do patriarcado, tudo no filme Charuto de mel (que estreia em 11 de novembro), a diretora francesa Kamir Aïnouz esteve no Brasil, para divulgar a fita e reafirmar a ligação com o irmão, o consagrado diretor cearense Karim Aïnouz (de A vida invisível e Praia do Futuro). Viajar metade do mundo, vinda da França, foi surpreendente, nas palavras da cineasta que, pelas restrições da covid-19, não pode estar “por toda a parte”, como o filme merecia, depois de ser apresentado no Festival de Veneza. O Brasil, como ela reforça, na segunda vez no país, depois de 15 anos, mas faz parte da sua vida, “desde sempre”.
Antes de entrar na temática do filme, Kamir mata a curiosidade quanto ao irmão Karim, 10 anos mais velho. “Somos muito próximos, não falo por ele, mas vejo que ambas nossas famílias têm segredos, crescemos em uma sociedade que não podemos ser completamente nós. Daí, vem a fonte e a semente para nos tornarmos diretores de filmes. Quisemos ter voz. Em estilos diversos, desenvolvemos personagens que lutam contra a opressão ou que buscam sua identidade, alguns temas se assemelham por virmos de países com culturas instáveis, por vezes duras e únicas”.
Kamir e Karim têm em comum o mesmo pai, que casou com a mãe de Kamir, na Argélia. A diretora nasceu na França e teve formação profissional em Los Angeles. Partilhando com Karim das perdas recentes das mães, Kamir dá o veredicto sobre o novo filme de Karim (Marinheiro das montanhas), de inspiração materna: “É um documentário tocante e cinematográfico. O mais sincero e pessoal filme de Karim”.
“Eu me sinto tanto argelina quanto francesa; praticamente criando uma terceira identidade. Minha herança é diferente: da mistura de culturas. Não me encaixo na corrente de cinema autêntica argelina e, da mesma forma, não me percebo uma cineasta francesa”, explica. Momentos difíceis embalam a trajetória da personagem central de Charuto de mel, Selma (Zoé Adjani, sobrinha de Isabele Adjani). “Com discretas cenas de sexo, “entre o prazer e a dor”, Selma vive um turbilhão da quebra de confiança com o avanço (com direito a cenas documentais) dos moldes islâmicos que a colocam em contato com a guerra civil na Argélia. “Retrato a vinda, nos anos de 1990, a chamada ‘década negra’. Para as mulheres, tudo ficou mais opressivo”, sublinha Kamir.
No quesito sensualidade (do filme Charuto de mel), Kamir se notou muito inspirada pela família, na Argélia. “Selma quer ser sensual por ser de lá. A todo momento, por lá, há a questão do cheiro: te compraram ao cheiro, a uma gama de flores, as pessoas te tocam a todo momento — é um país muito sensual”, descreve. Com adesão documental, Charuto de mel tem traços do clássico A batalha de Argel (1966), de Gillo Pontecorvo, que “trouxe a visão italiana para questões argelinas; entretanto, é um realizador poderoso que imprimiu visão ocidental”, segundo a diretora. Kamir faz questão de validar o ponto de vista da protagonista, independentemente de a equipe contemplar homens ou mulheres. Desde o primeiro estrelado por Zoé, ficou atenta ao “frescor natural” da atriz. “Selma se vê em situações diferentes, e, a cada mudança de cenário, traz um panorama amplo do que é ser uma mulher argelina e francesa, em dualidade”, comenta a diretora.
Charuto de mel teve por origem a visão rápida de uma jovem lutando contra o próprio corpo, num gesto de se rasgar e se debater. “Ela sofria demais, mas, para mim, estava ali o começo do que seria a personagem do meu filme. Selma lutava entre as culturas e um sistema que a impedia de ser livre. É uma imagem poderosa”, comenta a diretora. Kamir sabe puxar o fio da meada, na visão fortemente feminista. “Venho de família atenta à luta contra o colonialismo imperialista. Minha mãe, juíza e advogada, me mostrou o caminho da luta”, assevera. (CB)